Quinta-feira, 6 de Dezembro de 2012

NÃO PODEMOS VER O VENTO (cap. 06) - Parte 1

 

 

DENTRO DA MINHA CIDADE

 

 

Mariana já tinha feito cópias de posts inteiros para o seu trabalho. Mas só chegou à fala com Álvaro Teixeira de Oliveira, o GE de Ovar autor do blogue mais completo sobre a matéria que ela conseguiu encontrar na internet, quando veio à baila a questão dos massacres de Wiriamu. Álvaro dizia que, a certa altura, os membros dos Grupos Especiais tinham começado a ser vistos como criminosos por causa de Wiriamu. Os seguidores do blogue assanharam-se todos e o debate foi renhido. Saíram logo vários ex-GEs a terreiro para recordar que os factos e os documentos vieram a provar ter sido aquele pesadelo ação dos comandos. Alguns ex-comandos ripostaram. Mariana leu tudo com imensa atenção, ciente de estar perante a ressonância persistente de uma corda sensível longínqua. Dizem algumas fontes que, em Wiriamu, um soldado português parou à frente de uma mulher nativa grávida e lhe perguntou qual era o sexo da criança que aí vinha. Ela respondeu que não sabia. Ele esfaqueou-lhe a barriga, puxou cá para fora o feto já grande que se contorcia, levantou-o à altura dos olhos dela e cuspiu "agora já sabes". Atrocidades da guerra. A sociedade civil não dorme bem em cima disto. É mais fácil culpar uns grupelhos quase desconhecidos e violentos por natureza do que chamar à pedra uma grande e exemplar instituição como os comandos.

 

 

Mariana mandou um mail a Álvaro. Apresentou-se como sua leitora fiel, felicitou-o pelo blogue, explicou-lhe que estava a preparar um artigo sobre o Crescimento Pós-Traumático, e pediu-lhe a sua versão sobre os acontecimentos de Wiriamu. Álvaro telefonou-lhe nessa mesma noite. Era um senhor extremamente simpático. Combinaram ir-se correspondendo à medida que as respostas dele suscitassem mais perguntas dela.

 

Relativamente ao massacre de Wiriamu, escreve o soldado, é verdade que ele foi cometido por uma companhia de comandos, mas, inicialmente, era mais fácil atribuir essa ação aos GEs, que nada tiveram a ver com ela. No entanto, enquanto as coisas não foram esclarecidas, a culpa recaiu sempre sobre os GEs. Não tínhamos ninguém a defender a nossa imagem. Até para lavar as mãos dos outros servimos.

 

Agora repare, Mariana.

 

Aquilo a que nós chamamos o massacre de Wiriamu não passa de uma mistificação, porque aqueles aldeamentos serviam de refúgio aos guerrilheiros da Frelimo que, sistematicamente, atacavam as tropas portuguesas. O que aconteceu foi que, naquela altura, esses guerrilheiros atacaram uma companhia de comandos a quem provocaram baixas e, passados dias, tiveram a reação das nossas tropas.

Quero referir que os aldeamentos de Wiriamu não estavam enquadrados pelo Exército Português, pelo que os guerrilheiros da Frelimo facilmente aí encontravam refúgio e abastecimentos.

 

Refiro, ainda, que os acontecimentos de Wiriamu se deram passado pouco tempo depois de a Frelimo ter atravessado para a margem sul do Zambeze, o que justifica a facilidade de manobra dos freios. O Zambeze era uma barreira psicológica, compreende? Eles queriam passá-lo a todo o custo, e nós não queríamos que eles o passassem nem por nada. Foi o Zeca Caliate que fez isso à noite, com dois botes e meia dúzia de homens. Mais tarde, fiquei amigo dele. Mas, na altura, foi uma desmoralização terrível. As nossas tropas entraram num autêntico terror, com medo que os matassem a todos.

 

Logo a seguir, telefonou-lhe outra vez aquele senhor do Norte muito simpático a perguntar se tinha recebido o mail, se estava tudo bem, se o seu português de maçarico de Ovar era compreensível para uma senhora professora como ela. Mariana aproveitou logo para continuar a conversa.

Espere lá, Álvaro. Disse-me mesmo que moçambicanos tinham medo da Frelimo?

 

Mariana, pense bem, nem todos os moçambicanos eram da Frelimo. Existiam mais forças políticas bem organizadas, e muita gente sentia-se genuinamente portuguesa. Na altura da independência, o Samora Machel queria uma mediação de dez anos antes de tomar o poder. Nessa altura, em todo o país, que é gigantesco, existiam, por junto, sete mil guerrilheiros da Frelimo. Os nossos dirigentes políticos que lá foram é que lhe disseram: olha, mano, se não quiseres ficar com isto não fiques, nós vamo-nos embora à mesma. A Frelimo era tudo menos consensual entre as populações, e a primeira fase do seu combate era o terror. Seguia-se a luta armada, e depois a guerra psicológica. O terror, quando eu formei o meu Grupo, sentia-se em toda a parte. Uma vez estive dois dias fora numa missão. Quando regressámos, demos com todo o aldeamento num alvoroço, que tinha acontecido uma tragédia na serração do Miguel. E nós o que é que aconteceu na serração do Miguel, o que é que aconteceu na serração do Miguel, e eles que não sabiam, que sabiam que tinha acontecido uma tragédia e por isso tinham medo de lá ir. Fui lá eu. Tinham-nos assassinado a todos. Doze pessoas. Estavam uns na cantina, outros cá fora, outros na máquina, pois tinham-nos assassinado e a seguir tinham puxado o fogo àquilo tudo. Os corpos calcinados estavam caídos por toda a parte, de tal forma que ainda pareciam mais do que eram. Cheirava a carne assada. Sim, para responder à sua pergunta. Os moçambicanos tinham medo dos freios. E, infelizmente, a independência veio a dar-lhes razão: a Frelimo, literalmente, massacrou-os. Nem tinha outra forma de se afirmar no poder. E aquela lei 20/40, que todos os portugueses tinham direito a vinte quilos de bagagem e a quarenta horas para deixar Moçambique? Não foi uma forma de eles expulsarem quem não fosse da Frelimo? E olhe, não foi este Guebuza que está agora no poder que fez essa lei? E, mesmo assim, não lhes roubavam os vinte quilos de bagagem logo ali no aeroporto? Como é que quer que uma pessoa não se revolte?

 

Agora há o Facebook, recorda-lhe Mariana.

 

Ai, há-de lá chegar, há-de lá chegar, responde-lhe Álvaro Teixeira, inflamado. A Tunísia, o Egipto, a Líbia, até a Síria, há-de acontecer em toda a África. Olhe, penso muito numa coisa. A propósito dos milhares de desgraçados que foram mandados para aqueles campos de concentração dos frelos. Eu nunca fui de andar na má vida, mas, quando estava na cidade, dava-me prazer sair à noite e tomar o meu copo. Ganhava bem, e gostava de gastar bem. Apreciava um bom bar, uma boa boite, uma vida noturna animada. E, tendo em conta tudo o que lá vi, não consigo deixar de pensar em todas aquelas pobres mulheres. Tão lindas. Tão frágeis. Bonequinhas de porcelana. Foram todas deportadas. Muitas acabaram naquela mesma zona do Niassa onde eu estive antes de ir para o Dondo, ali mesmo em Olivença, eles fizeram um campo lá. Hão-de ter morrido só de não aguentarem aquelas condições. Ou então de doença. E, para todas as que sobreviveram, aquilo há-de ter sido muito, mas mesmo muito duro.

 

Imagino, responde Mariana, só para ele não se esquecer de que ela ainda está ali.

 

É por isso que, como já lhe disse, eu, se fosse a si, não dava muito por essas fontes que a Mariana consultou, remata Álvaro Teixeira, concluída que está a sua digressão complexa. Wiriamu não passa de uma mistificação, que serviu tão somente para denunciar a Guerra Colonial em Portugal e no mundo. Os grandes massacres ocorreram por parte da Frelimo contra as suas próprias populações; e há documentação e testemunhos que o comprovam. Em Wiriamu chegaram os frelos a matar 1500 nativos. Sabe quem me deu estes números? O meu amigo Zeca Caliate. O primeiro guerrilheiro a atravessar o Zambeze. O mundo é pequeno, Mariana. O mundo é pequeno.

 

Compreendo, conclui Mariana, já pronta a passar a novas frentes de ataque. Eu já lhe mando mais perguntas.

 

Clara Pinto Correia

(Não Podemos ver o vento)

 

Ovar, 6 de Dezembro de 2012

Álvaro Teixeira (GE)

 

 


Publicado por gruposespeciais às 17:55
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