Mariana recorda o blogue, recorda as fotos do jovem militar, recorda os relatos pormenorizados das missões, recorda a linguagem e a simbologia, e tenta entender.
Álvaro, escreve ela. A mim parece-me evidente que o Álvaro tem um grande orgulho em ter sido GE. Quer falar-me nisso?
Era o que a psicóloga menos esperava, mas Álvaro demorou quinze dias a responder-lhe. Mariana chegou a telefonar--lhe, a perguntar se estava tudo bem, e ele foi, como sempre, extremamente simpático — mas insistiu que a questão do orgulho era muito delicada, e que precisava de tempo para pensar. Quando, finalmente, deu sinais de vida, não podia ter sido mais lacónico.
Quanto à questão que me colocou sobre o meu orgulho em ter servido o nosso Exército, tenho a dizer que não sinto orgulho nenhum nisso, a não ser no facto de ter recebido 63 negros, em que a maioria não falava português, falavam o seu dialeto ou o inglês, e conseguir, em cinco meses, que falassem o português: esse feito, para mim, constituiu um grande motivo de orgulho. Sabe, no meu Grupo havia cerca de meia dúzia de instruendos que tinham estado em missões católicas e que falavam bem a língua portuguesa; e foi através deles que consegui fazer-me compreender. No fim da instrução tinha toda a gente a entender o português, e a maioria a falá-lo fluentemente.
Outro motivo de orgulho era, no fim de cada mês, pagar-lhes o vencimento, o que, como deve calcular, era um dia de festa. Estes militares tinham um vencimento idêntico às tropas do exército normal português, o que para um negro representava muito dinheiro. A sua felicidade era terem um rádio, uns óculos de sol e uma arma. Ora, tudo isso lhes era proporcionado com o dinheiro que ganhavam. Portanto, quando chegava o dia do pagamento, eu via neles verdadeira felicidade, porque conseguiam comprar aquilo que ambicionavam. Claro, certas situações eram problemáticas. Havia alguns que se excediam com aquelas bebidas alcoólicas que só eles sabiam fazer, mas nunca castiguei nenhum nesse dia. Eles que se desforrassem, coitados. A nossa vida era tão dura. No dia seguinte, no entanto, costumava massacrá-los com exercícios físicos até à exaustão. Desta forma fui combatendo o abuso daquelas bebedeiras destemperadas, porque, como deve calcular, não podiam coexistir com o clima da guerra. Não éramos, propriamente, um bando de mercenários. Ou eu, pelo menos, nunca deixei que fôssemos.
Mas digo-lhe, Mariana, com toda a franqueza: o meu maior orgulho foi passar aquela guerra sem sofrer qualquer baixa entre os meus homens.
Mariana conhece o blogue bem demais. Talvez seja verdade que Álvaro, que ao contrário dos outros não foi voluntário, ao contrário dos outros talvez não tenha mesmo orgulho em ter sido GE. Mas é visível, por todo o material das suas postagens, que continua extremamente ligado a Moçambique e que segue de perto os acontecimentos mais ocultos do país onde combateu. Porquê?
O homem de Ovar responde sem uma hesitação.
Olá Mariana. Quanto à sua última questão, quero dizer-lhe que adoro aquele país e tenho uma imensa pena que seja tão mal governado, porque, apesar de tudo, é um país rico, não só em belezas naturais, que conheci muito bem, como na sua expressão agrícola e florestal, mal explorada e vítima da roubalheira. Sou antifrelimista convicto, por isso, defendo uma nova forma política para aquele Moçambique tão belo e de uma gente tão extraordinária.
Não Podemos ver o vento
Clara Pinto Correia
Ovar, 12 de Dezembro de 2012
Álvaro Teixeira (GE)
Combatentes de Guerra do Ultramar
Futebol de Causas (Manifestação Académica - Final da Taça 1969 - vídeo)