Mariana recorda o blogue, recorda as fotos do jovem militar, recorda os relatos pormenorizados das missões, recorda a linguagem e a simbologia, e tenta entender.
Álvaro, escreve ela. A mim parece-me evidente que o Álvaro tem um grande orgulho em ter sido GE. Quer falar-me nisso?
Era o que a psicóloga menos esperava, mas Álvaro demorou quinze dias a responder-lhe. Mariana chegou a telefonar--lhe, a perguntar se estava tudo bem, e ele foi, como sempre, extremamente simpático — mas insistiu que a questão do orgulho era muito delicada, e que precisava de tempo para pensar. Quando, finalmente, deu sinais de vida, não podia ter sido mais lacónico.
Quanto à questão que me colocou sobre o meu orgulho em ter servido o nosso Exército, tenho a dizer que não sinto orgulho nenhum nisso, a não ser no facto de ter recebido 63 negros, em que a maioria não falava português, falavam o seu dialeto ou o inglês, e conseguir, em cinco meses, que falassem o português: esse feito, para mim, constituiu um grande motivo de orgulho. Sabe, no meu Grupo havia cerca de meia dúzia de instruendos que tinham estado em missões católicas e que falavam bem a língua portuguesa; e foi através deles que consegui fazer-me compreender. No fim da instrução tinha toda a gente a entender o português, e a maioria a falá-lo fluentemente.
Volta a teclar.
Muito obrigado por tudo, Álvaro. Agora, veja lá se pode ajudar-me noutra coisa: há imensa gente que nunca ouviu falar nos GEs. Há homens da sua idade que estiveram na tropa em Moçambique e não sabem, mesmo, o que foram os GEs. Já ouvi várias versões diferentes sobre as razões de ser deste secretismo. Qual é a sua? Bem, responde daí a pouco o GE bloguista. Vamos lá ver. Se calhar, a minha versão vai desiludi-la; mas eu, de facto, não tenho assim uma visão muito emocionante da guerra. Os GEs eram pequenas forças de intervenção constituídas por militares nativos oriundos das zonas onde, após a instrução, iriam atuar. Só começaram a existir em 1970 e eram muito reduzidos, daí o facto de muita gente desconhecer a sua existência. Para dar um exemplo, na província do Niassa, que é a maior de Moçambique, penso que não existiam mais de três Grupos Especiais; o que, para a quantidade de aquartelamentos existentes na província, era uma gota de água. Daí a razão de muita gente, se calhar a maioria dos portugueses, nunca ter ouvido falar dos GEs. Álvaro, insiste Mariana, sempre à procura da brecha. Sabe o que é que me faz impressão? As vezes, raramente, encontro pessoas que ouviram falar dos GEs.
DENTRO DA MINHA CIDADE
Mariana já tinha feito cópias de posts inteiros para o seu trabalho. Mas só chegou à fala com Álvaro Teixeira de Oliveira, o GE de Ovar autor do blogue mais completo sobre a matéria que ela conseguiu encontrar na internet, quando veio à baila a questão dos massacres de Wiriamu. Álvaro dizia que, a certa altura, os membros dos Grupos Especiais tinham começado a ser vistos como criminosos por causa de Wiriamu. Os seguidores do blogue assanharam-se todos e o debate foi renhido. Saíram logo vários ex-GEs a terreiro para recordar que os factos e os documentos vieram a provar ter sido aquele pesadelo ação dos comandos. Alguns ex-comandos ripostaram. Mariana leu tudo com imensa atenção, ciente de estar perante a ressonância persistente de uma corda sensível longínqua. Dizem algumas fontes que, em Wiriamu, um soldado português parou à frente de uma mulher nativa grávida e lhe perguntou qual era o sexo da criança que aí vinha. Ela respondeu que não sabia. Ele esfaqueou-lhe a barriga, puxou cá para fora o feto já grande que se contorcia, levantou-o à altura dos olhos dela e cuspiu "agora já sabes". Atrocidades da guerra. A sociedade civil não dorme bem em cima disto. É mais fácil culpar uns grupelhos quase desconhecidos e violentos por natureza do que chamar à pedra uma grande e exemplar instituição como os comandos.
Combatentes de Guerra do Ultramar
Futebol de Causas (Manifestação Académica - Final da Taça 1969 - vídeo)