Estamos em 6 de Janeiro de 1974. Aproximava-se uma coluna militar e civil com carga crítica para a Barragem de Cahora Bassa e havia necessidade de fazer a limpeza, em termos de possíveis ataques à coluna que, entre outro material, transportava as turbinas para a Barragem e um qualquer róket que as atingisse poderia provocar danos consideráveis e atrasar em alguns meses a sua instalação.
Saí da base, no Fúdze, cerca das cinco horas da manhã, para fazer o patrulhamento até Nhampassa, local onde passaria o testemunho aos militares vindos Guro. Levei todo o Grupo Especial e partimos em direcção a Norte, batendo todos os pontos favoráveis à montagem de emboscadas. Tudo corria normalmente sem vestígios de presença do inimigo.
Cerca das 10 horas, deparei-me com uma clareira, antes de uma curva da estrada e verifico que, após um baixo arvoredo, havia uma encosta de penhascos, não muito alta, mas que, depois de uma minuciosa análise, concluí que seria um local óptimo para uma emboscada. Continuei pela estrada até ao fim da clareira e mandei parar o Grupo que avançava pelos dois lados da estrada. Dei instruções ao Vasco, que era o militar mais preparado e com um grande sentido de liderança, e mandei avançar o Grupo, mas mais devagar e com atenção redobrada.
Fiquei para trás com mais três militares e embrenhei-me mais um pouco na floresta até ficar com a cabeça do desfiladeiro à vista. O Grupo foi avançando e reparo que lá no alto me aparece um corpo, que, de imediato, se escondeu. Era ali que estava preparava a emboscada que tanto temíamos. O Grupo continuava a avançar e preparei-me para disparar, com a G3 apoiada num ramo de uma árvore e logo que o Grupo entra na zona de morte da emboscada, vejo, de novo o corpo erguer-se. Foi só um disparo e vejo a cabeça a desfazer-se com o impacto da bala. De imediato, comecei a subir a pequena encosta com os três militares que tinham fica comigo e, quando chego ao cimo, já não vejo mais ninguém, apenas um corpo com a nuca quase desfeita. Nunca imaginei o que iria encontrar. Era o corpo de um norte-coreano, dos diversos atiradores especiais que apoiavam a Frelimo, mas a arma dele que deveria ser uma Simonov, já lá não estava, apenas se via a poça de sangue por baixo da cabeça. Pelo que vi em redor, o número de guerrilheiros deveria ser grande. Informei, via rádio, o Comandante de Operações de Vila Gouveia e, passado pouco tempo, já três helicópteros sobrevoavam a zona com as metralhadoras bem à vista. Senti-me mais seguro, porque os hélis faziam um vai vem constante por cima, até chegar a Nhampassa, onde eles aterraram e onde já estavam os militares vindos do Guro.
Foi o único morto que fiz em toda a guerra e do qual nunca me arrependi, porque era um elemento dos novos colonizadores de Moçambique, o Imperialismo Comunista Internacional.
Ovar, 7 de Fevereiro de 2013
Álvaro Teixeira (GE)
Mariana recorda o blogue, recorda as fotos do jovem militar, recorda os relatos pormenorizados das missões, recorda a linguagem e a simbologia, e tenta entender.
Álvaro, escreve ela. A mim parece-me evidente que o Álvaro tem um grande orgulho em ter sido GE. Quer falar-me nisso?
Era o que a psicóloga menos esperava, mas Álvaro demorou quinze dias a responder-lhe. Mariana chegou a telefonar--lhe, a perguntar se estava tudo bem, e ele foi, como sempre, extremamente simpático — mas insistiu que a questão do orgulho era muito delicada, e que precisava de tempo para pensar. Quando, finalmente, deu sinais de vida, não podia ter sido mais lacónico.
Quanto à questão que me colocou sobre o meu orgulho em ter servido o nosso Exército, tenho a dizer que não sinto orgulho nenhum nisso, a não ser no facto de ter recebido 63 negros, em que a maioria não falava português, falavam o seu dialeto ou o inglês, e conseguir, em cinco meses, que falassem o português: esse feito, para mim, constituiu um grande motivo de orgulho. Sabe, no meu Grupo havia cerca de meia dúzia de instruendos que tinham estado em missões católicas e que falavam bem a língua portuguesa; e foi através deles que consegui fazer-me compreender. No fim da instrução tinha toda a gente a entender o português, e a maioria a falá-lo fluentemente.
Volta a teclar.
Muito obrigado por tudo, Álvaro. Agora, veja lá se pode ajudar-me noutra coisa: há imensa gente que nunca ouviu falar nos GEs. Há homens da sua idade que estiveram na tropa em Moçambique e não sabem, mesmo, o que foram os GEs. Já ouvi várias versões diferentes sobre as razões de ser deste secretismo. Qual é a sua? Bem, responde daí a pouco o GE bloguista. Vamos lá ver. Se calhar, a minha versão vai desiludi-la; mas eu, de facto, não tenho assim uma visão muito emocionante da guerra. Os GEs eram pequenas forças de intervenção constituídas por militares nativos oriundos das zonas onde, após a instrução, iriam atuar. Só começaram a existir em 1970 e eram muito reduzidos, daí o facto de muita gente desconhecer a sua existência. Para dar um exemplo, na província do Niassa, que é a maior de Moçambique, penso que não existiam mais de três Grupos Especiais; o que, para a quantidade de aquartelamentos existentes na província, era uma gota de água. Daí a razão de muita gente, se calhar a maioria dos portugueses, nunca ter ouvido falar dos GEs. Álvaro, insiste Mariana, sempre à procura da brecha. Sabe o que é que me faz impressão? As vezes, raramente, encontro pessoas que ouviram falar dos GEs.
DENTRO DA MINHA CIDADE
Mariana já tinha feito cópias de posts inteiros para o seu trabalho. Mas só chegou à fala com Álvaro Teixeira de Oliveira, o GE de Ovar autor do blogue mais completo sobre a matéria que ela conseguiu encontrar na internet, quando veio à baila a questão dos massacres de Wiriamu. Álvaro dizia que, a certa altura, os membros dos Grupos Especiais tinham começado a ser vistos como criminosos por causa de Wiriamu. Os seguidores do blogue assanharam-se todos e o debate foi renhido. Saíram logo vários ex-GEs a terreiro para recordar que os factos e os documentos vieram a provar ter sido aquele pesadelo ação dos comandos. Alguns ex-comandos ripostaram. Mariana leu tudo com imensa atenção, ciente de estar perante a ressonância persistente de uma corda sensível longínqua. Dizem algumas fontes que, em Wiriamu, um soldado português parou à frente de uma mulher nativa grávida e lhe perguntou qual era o sexo da criança que aí vinha. Ela respondeu que não sabia. Ele esfaqueou-lhe a barriga, puxou cá para fora o feto já grande que se contorcia, levantou-o à altura dos olhos dela e cuspiu "agora já sabes". Atrocidades da guerra. A sociedade civil não dorme bem em cima disto. É mais fácil culpar uns grupelhos quase desconhecidos e violentos por natureza do que chamar à pedra uma grande e exemplar instituição como os comandos.
(...Continuação)
Combatentes de Guerra do Ultramar
Futebol de Causas (Manifestação Académica - Final da Taça 1969 - vídeo)