Sábado, 27 de Fevereiro de 2010

A MINHA VIDA DE GE (parte 10) – A vida no Inferno

 

 

26 de Dezembro de 1973, 3 horas da madrugada. A viaturas prontas no aquartelamento para transportar o Grupo para a Serra Choa. Objectivo: assaltar uma base da Frelimo instalada em plena serra.
O tempo estava frio, chuvoso e com muito nevoeiro. Saímos do acampamento à hora marcada e fomos “despejados” na base da Serra, num local até onde as viaturas podiam penetrar. Era, ainda noite cerrada e, cada um procurou acomodar-se da melhor forma até ao raiar do dia. Por causa do frio, deitei-me numa cova, onde pensei estar mais protegido. A vontade de dormir era de tal ordem que, passados momentos, adormeci. Acordei com a água já quase a chegar-me à boca e, claro está, todo encharcado. O sono profundo era derivado à medicação que usava, uma espécie de droga, o “Valium 10”. Quando acordei, estava a amanhecer e, com mais sono ou menos sono, começamos os preparativo para subir a encosta muito íngreme da Serra, não sem antes, tomarmos o pequeno almoço. Para esta operação levava um guia, que me tinha sido entregue pela Pide e era oriundo da Base que iríamos procurar assaltar. Este guia, que também tinha a sua própria ração de combate, recusava-se a comer. Procurei saber a razão e, com a ajuda de um intérprete, cheguei à conclusão que ele não comia devido às dores que sentia. Mandei-o tirar a camisa, porque ele queixava-se de dores nas costas e, qual não foi o meu espanto, quando reparei nas costas do homem. As costas estavam todas ensanguentadas devido aos diversos golpes que tinha e reparei que, em muitos deles ainda restavam sementes de piri-piri, o que, de facto, lhe deveriam provocar dores horríveis.
Peguei na saca de primeiros socorros e, depois de lhe lavar as costas com água oxigenada, comecei a limpar-lhe os golpes e a colocar-lhe mercuro-cromo e sulfamidas. Depois deste tratamento, mandei-o vestir, de novo, a camisa e, passado algum tempo, o homem já parecia outro. Esperamos que comesse algo, o que aconteceu e, a partir daí, mostrou-se colaborante.
O nevoeiro, entretanto, tinha levantado e iniciamos a escalada da encosta, numa tarefa difícil, devido à forte inclinação. Uma vez chegados ao cimo, pude contemplar a beleza da paisagem e custava-me compreender como para lá daquela colinas poderia haver guerra. Do alto da encosta pude avistar território que, de acordo com alguns membros do Grupo, já era a Rodésia, actual Zimbabué. Era todo um cenário de guerra que estava ao alcance dos meus olhos. De um lado, a Frelimo contra as Forças Portuguesas e do outro, as ZANU, do Robert Mugabe, contra o regime do Ian Smith. Foi nessa altura que me comecei a aperceber do perigo que seria entrar naquele ninho de vespas, porque as informações que possuía era a de que as Zanu, quando acossadas pelo exército rodesiano, procuravam refúgio no interior de Moçambique, nas bases da Frelimo. Estavam reunidos todos os condimentos para uma incursão perigosíssima. Seguindo as indicações do guia, lá fomos avançando no terreno e começaram a surgir as primeira flagelações do inimigo. Cerca das três horas da tarde, numa zona mais plana e arborizada, paramos para descansar, já que a jornada tinha sido longa. Sentei-me numa pedra encostado a uma árvore. Nem tive tempo para pousar a G3, quando senti um tiro de arma de precisão, mesmo junto à minha cabeça. Instintivamente, atirei-me para o lado e procurei abrigar a cabeça por detrás da pedra. Mais dois tiros, uma das balas atingiu a árvore, ao lado da pedra e a segunda bateu mesmo na esquina da pedra, quando eu procurava levantar a cabeça para ver a origem dos tiros. Alguns estilhaços entraram-me na face esquerda, mas nada de grave, apenas algum sangue a escorrer pela face. Nessa altura, os nossos militares já tinham localizado a origem dos tiros e, com alguma rajadas, conseguiram “calar” a situação. Depois disto, procuramos avançar no terreno, com mais uma ou outra flagelação, mas nada que causasse problemas de maior. O dia começava a escurecer e teríamos que procurar um local seguro para passar a noite.
(/...)
 
Ovar, 27 de Fevereiro de 2010
Álvaro Teixeira (GE)      

 


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Domingo, 15 de Novembro de 2009

A MINHA VIDA DE GE – Parte 8 (o baptismo de fogo)

 

 

 

Depois de uns dias de uma certa acalmia passados no reconhecimento do terreno na mata da parte oeste da estrada que fazia a ligação com Tete e Cahora Bassa, em patrulhamentos diários nas imediações do acampamento, destruição de palhotas abandonadas, umas saídas à noite para a caça, ou, de madrugada, para apanhar galinhas do mato, sou chamado para a primeira operação:
Uma incursão na Serra Choa, a fim de tentar apanhar cerca de duas dúzias de cabeças de gado bovino que tinham sido roubadas, por guerrilheiros da FRELIMO, de um aldeamento sobranceiro a Vila Gouveia (Catandica), do qual não recordo o nome, mas onde existia um destacamento comandado pelo alferes Camilo, um homem de farto bigode e que tomava café, como que bebia água. Fui transportado até Vila Gouveia, a fim de ser inteirado dos acontecimentos e do material de guerra utilizado pelo inimigo. O major de Operações informou-me que o inimigo só possuía canhangulos e que teriam sido em pequeno número e eu, como já tinha recebido algumas parcas informações, levei um único pelo pelotão do GE.
Parti confiante para o cimo da serra, onde passei a noite no referido destacamento. Na madrugada seguinte, cerca das 5 horas, preparamos tudo e, de acordo com as informações recebidas, iniciamos a nossa caminhada em direcção ao local onde, eventualmente, poderia estar o gado que havia sido roubado. Depois de cerca de 3 horas de caminhada deparámo-nos com um rio que, embora não sendo largo, era bastante profundo e com uma força decorrente bastante grande. Era a primeira dificuldade. A força da corrente era de tal modo forte que bastava um pequeno deslize, para se transformar num desastre fatal. A solução encontrada foi amarrarmos os cintos das calças uns aos outros e entrarmos, em pequenos grupos na água que nos dava pelo peito. Os primeiros militares que atravessaram o rio montaram a segurança na outra margem até passar todo o pelotão. Esta operação demorou cerca de uma hora. Logo ali, comecei a aperceber-me que as instruções recebidas não seriam correctas, porque não seria possível atravessar uma manda de gado naquela situação. Com todo o pelotão do outro lado do rio, paramos para descansar e tomar o pequeno-almoço. Aproveitei para fazer, pela rádio, o primeiro contacto e tentar confirmar as instruções que havia recebido. A informação recebida era a de que deveria continuar a prosseguir a operação, porque as coordenadas que indiquei eram as correctas. Reiniciamos a marcha e, cerca de duzentos metros à frente, um dos primeiros militares alertou-me que estávamos a ser vigiados, porque detectou vestígios de alguém que este algum tempo parado junto a uma árvore. Perante isto, tomei a decisão de avançarmos rapidamente para alcançar uma posição dominante no terreno, mas o imprevisível estava para acontecer. Avançamos em linha, com devido respeito pelas distâncias e, cerca de cem metros à frente, sofro uma emboscada, numa zona completamente imprevisível: capim bastante baixo, árvores finas e de pequeno porte e sem qualquer espécie de abrigo. Estou na zona de morte da emboscada. Disparei umas rajadas e atirei uma granada defensiva. O tiroteio acabou. Avancei para o local onde o inimigo montou a emboscada e qual não é o meu espanto, quando vejo a quantidade de cartuchos de armas automáticas utilizadas. Afinal, as armas não eram canhangulos, de acordo com as informações que tinha recebido, mas de armas automáticas (Kalashnicovs). Decidi não prosseguir com a operação e subir para um ponto alto do terreno e aí, entro em contacto com o centro de operações, dando-lhe conta do sucedido e da minha indignação e revolta pela situação a que fui conduzido. A indicação recebida foi a de abortar a operação, regressar ao destacamento e foi o que aconteceu. No dia seguinte fui recebido pelo major do Batalhão responsável pelas operações e descarreguei em cima dele toda a minha raiva, Ele calou-se e, passados uns momentos, começou a pedir desculpa pela embrulhada em que me tinha metido, mas que as informações que tina eram aquelas e que lhe tinham sido transmitidas pela DGS (Pide). A situação acalmou, mas deixei-lhe um aviso: “que tivesse muito cuidado, porque não haveria uma segunda vez”.
Regressei ao Fúdze com a consciência de que estava rodeado por um formigueiro imenso e que a Serra Choa iria ser um bico-de-obra, conforme referirei em artigos posteriores.
 
Ovar, 15 de Novembro de 2009
Álvaro Teixeira (GE)   

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