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No regresso ao acampamento, procurei, sempre, avançar por itinerários que me pareciam os mais seguros.
Passada cerca de uma hora, mandei parar todo o Grupo, a fim de meditar sobre tudo o que tinha ocorrido naquela manhã terrível, inteirar-me da situação moral do GE e verificar a quantidade de munições que ainda nos restavam. Sentei-me, por uns momentos, a consultar a carta geográfica, porque tina a certeza que a retirada não iria ser fácil. Passados alguns momentos, chamei cada um dos militares, a fim de verificar a quantidade de munições que possuíam. O resultado foi desastroso, não consegui encontrar um elemento que tivesse mais do que uma cartucheira carregada, munições de morteiro esgotadas e a única granada defensiva que possuíamos era a que estava em meu poder. Procurei, com as balas que ainda sobravam em algumas cartucheiras carregar um ou outro “pente” das metralhadoras HK21.
O tempo que calculei para chegar ao acampamento seria cerca de um dia e meio e continuávamos numa zona infestada de tropas inimigas, pelo que todos os cuidados eram poucos. Dei ordens para não responder a qualquer flagelação, a fim de guardar as munições para qualquer emboscada que pudesse surgir. Reiniciamos o regresso e, tal como eu previa, fomos acompanhados de uma ou outra flagelação até ao escurecer do dia.
Escolhi um local para passar a noite, o mais seguro possível, mas com a certeza de que poderia haver um ataque de um momento para o outro. Aí passamos a noite, sem que nada acontecesse, mas, ao amanhecer, fomos acordados com novas flagelações, mas nada de preocupante. As flagelações acalmaram e, depois de tudo preparado, reiniciámos o regresso, sempre com a indicação expressa de não se gastarem munições, porque as poucas que tínhamos, poderiam ser vitais para qualquer eventualidade, uma vez que, de acordo com os meus cálculos, só iríamos chegar ao acampamento ao fim da tarde.
Começamos a avançar no terreno, sempre com a preocupação de percorrer um trajecto que não permitisse emboscadas. O calor começava a apertar e era, cada vez mais difícil, avançar no terreno. Lembro que estávamos a percorrer a Serra Choa e que a cada quilómetro que avançássemos, eram novas situações com que nos deparávamos. A vegetação era luxuriante, mas escondia perigos em qualquer altura. Cerca das onze horas da manhã, sofremos uma emboscada bem preparada pelo inimigo. Foi numa zona em que experimentei mais uma situação desconhecida para mim. Não houve qualquer baixa, mas foi numa zona onde havia algo de que eu ouvia falar, mas que desconhecia, era zona de feijão-macaco. São indescritíveis as consequências que o contacto com essa planta provocam. Uma comichão terrível que comecei a sentir e que aumentava à medida que cada vez mais coçava. Passei álcool pelos braços, mas a comichão aumentava cada vez mais, pelo que o caminho até ao acampamento foi de um sofrimento enorme.
Ao fim da tarde, tal como o previsto, chegamos ao acampamento e única satisfação que nos restava era a de que, depois de enfrentadas todas aquelas situações, termos chegados todos sãos e salvos.
Ovar, 17 de Março de 2010
Álvaro Teixeira (GE)
26 de Dezembro de 1973, 3 horas da madrugada. A viaturas prontas no aquartelamento para transportar o Grupo para a Serra Choa. Objectivo: assaltar uma base da Frelimo instalada em plena serra.
O tempo estava frio, chuvoso e com muito nevoeiro. Saímos do acampamento à hora marcada e fomos “despejados” na base da Serra, num local até onde as viaturas podiam penetrar. Era, ainda noite cerrada e, cada um procurou acomodar-se da melhor forma até ao raiar do dia. Por causa do frio, deitei-me numa cova, onde pensei estar mais protegido. A vontade de dormir era de tal ordem que, passados momentos, adormeci. Acordei com a água já quase a chegar-me à boca e, claro está, todo encharcado. O sono profundo era derivado à medicação que usava, uma espécie de droga, o “Valium 10”. Quando acordei, estava a amanhecer e, com mais sono ou menos sono, começamos os preparativo para subir a encosta muito íngreme da Serra, não sem antes, tomarmos o pequeno almoço. Para esta operação levava um guia, que me tinha sido entregue pela Pide e era oriundo da Base que iríamos procurar assaltar. Este guia, que também tinha a sua própria ração de combate, recusava-se a comer. Procurei saber a razão e, com a ajuda de um intérprete, cheguei à conclusão que ele não comia devido às dores que sentia. Mandei-o tirar a camisa, porque ele queixava-se de dores nas costas e, qual não foi o meu espanto, quando reparei nas costas do homem. As costas estavam todas ensanguentadas devido aos diversos golpes que tinha e reparei que, em muitos deles ainda restavam sementes de piri-piri, o que, de facto, lhe deveriam provocar dores horríveis.
Peguei na saca de primeiros socorros e, depois de lhe lavar as costas com água oxigenada, comecei a limpar-lhe os golpes e a colocar-lhe mercuro-cromo e sulfamidas. Depois deste tratamento, mandei-o vestir, de novo, a camisa e, passado algum tempo, o homem já parecia outro. Esperamos que comesse algo, o que aconteceu e, a partir daí, mostrou-se colaborante.
O nevoeiro, entretanto, tinha levantado e iniciamos a escalada da encosta, numa tarefa difícil, devido à forte inclinação. Uma vez chegados ao cimo, pude contemplar a beleza da paisagem e custava-me compreender como para lá daquela colinas poderia haver guerra. Do alto da encosta pude avistar território que, de acordo com alguns membros do Grupo, já era a Rodésia, actual Zimbabué. Era todo um cenário de guerra que estava ao alcance dos meus olhos. De um lado, a Frelimo contra as Forças Portuguesas e do outro, as ZANU, do Robert Mugabe, contra o regime do Ian Smith. Foi nessa altura que me comecei a aperceber do perigo que seria entrar naquele ninho de vespas, porque as informações que possuía era a de que as Zanu, quando acossadas pelo exército rodesiano, procuravam refúgio no interior de Moçambique, nas bases da Frelimo. Estavam reunidos todos os condimentos para uma incursão perigosíssima. Seguindo as indicações do guia, lá fomos avançando no terreno e começaram a surgir as primeira flagelações do inimigo. Cerca das três horas da tarde, numa zona mais plana e arborizada, paramos para descansar, já que a jornada tinha sido longa. Sentei-me numa pedra encostado a uma árvore. Nem tive tempo para pousar a G3, quando senti um tiro de arma de precisão, mesmo junto à minha cabeça. Instintivamente, atirei-me para o lado e procurei abrigar a cabeça por detrás da pedra. Mais dois tiros, uma das balas atingiu a árvore, ao lado da pedra e a segunda bateu mesmo na esquina da pedra, quando eu procurava levantar a cabeça para ver a origem dos tiros. Alguns estilhaços entraram-me na face esquerda, mas nada de grave, apenas algum sangue a escorrer pela face. Nessa altura, os nossos militares já tinham localizado a origem dos tiros e, com alguma rajadas, conseguiram “calar” a situação. Depois disto, procuramos avançar no terreno, com mais uma ou outra flagelação, mas nada que causasse problemas de maior. O dia começava a escurecer e teríamos que procurar um local seguro para passar a noite.
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Ovar, 27 de Fevereiro de 2010
Álvaro Teixeira (GE)